terça-feira, 14 de setembro de 2010

Das relíquias II

* No café da esquina *
Fingiram-se estranhos quando os olhos se encontraram.
Um soco na boca do estômago...pra ele.
Pra ela, as borboletas dançantes, teimavam em coreografar no pavimento torácico.
Pra ambos, um fugir do chão sob os pés.
Era a primeira vez que se viam depois de tanto tempo. Assim, há metros de distância. Há três ou quatro passos. Há uma ou duas palavras.
Por um lapso de segundo temeu que ele pudesse ouvir o tambor pulsante em seu peito.
Por um instante tentou captar, na brisa que passava, qualquer resquício do cheiro dela. "Almíscar e vanilla" - ela costumava dizer. Pra ele, e suas lembranças, ela sempre cheirou a aconchego. E disso ele nunca esqueceu.
Ele engordara, ela notou.
Ela mudara o cabelo, ele aprovou.
A cena, agora paralisada, deu tempo pra que sentissem saudades. Deu tempo para que as perguntas, antes sufocadas, voltassem a latejar. Deu tempo de pensar 'outra vez'. Em outra vez.
Ela estava acompanhada, ele não pôde deixar de perceber.
Ele não usava aliança, ela logo verificou.
Ficaram ali, conhecidamente estranhos, trocando olhadelas furtivas. Supondo. Lembrando. Digerindo a presença um do outro.
De repente os olhos ficaram turvos e ela teve medo de chorar.
De repente ele sentiu uma necessidade imensa de olhar pra os próprios pés. Vergonha talvez. Remorso, quem sabe.
Ela olhou pra ele e, desviando o foco para aquele ao seu lado, não teve mais certeza de nada. Mas parecia resignada.
Ele, por sua vez, olhou pra ela e procurou qualquer motivo, qualquer porquê, qualquer resposta.
O cenário voltou a se mexer, despertando-os, por fim.
Pela última vez os olhos se cruzaram, e foi mágoa o que se viu neles.
Ela levantou e foi embora, mãos dadas com outro alguém.
Ele ficou ali. Inerte. Dormente.
E entendeu da onde vinha a dor que ardia em seu peito naquele instante: era a primeira vez, depois de tanto tempo, que a olhava de outra perspectiva. Da perspectiva de fora da sua vida.

E ele chorou.







Ps.: Porque eu não sei de nenhum encontro pós-amor que tenha sido fácil. E quis falar disso.

2 comentários:

  1. JURO por Deus que não sei o que comentar.
    E nem vou tentar, vou continuar achando que o texto é lindo sem pensar muito, ou refletir sobre ele.
    Mas é lindo, não se pode negar.

    Beijo, pretinha.

    ResponderExcluir
  2. parabéns pelo texto, belíssimo, que me deixou muda. E qualquer pessoa que já tenha passado por isso certamente se identificou em alguns trechos e, igualmente, ficou sem palavras.

    bjos.

    ResponderExcluir